"Prevendo a morte, soldado preparou filho para a vida sem pai
Ele se desenhou com asas de anjo. Deixou um conjunto de suas plaquetas de identificação militar no criado-mudo em meu apartamento em Manhattan. Comprou um pequeno abrigo azul para nosso bebê usar em casa depois de chegar do hospital. Então começou a escrever o que se tornaria um diário de 200 páginas dedicado a nosso filho, para o caso de ele não voltar do deserto iraquiano.
Antes de beijar minha barriga de grávida e dizer adeus, meu noivo, o primeiro-sargento do Exército americano Charles Monroe King, preparou-se durante meses para o começo da vida que criara e o fim da sua. Ele embarcou num avião em dezembro de 2005 com duas missões - liderar seus jovens soldados no combate e preparar nosso garoto para uma vida sem o pai.
“Querido filho”, escreveu Charles na última página do diário, “espero que este livro lhe seja útil. Por favor, perdoe-me pela letra e pela gramática ruins. Tentei terminar o livro antes de ser enviado ao Iraque. Tem de ser algo especial para você. Venho escrevendo nos EUA, Kuwait e Iraque.”
Agora, o diário terá de falar por Charles. Ele foi morto em 14 de outubro, quando uma bomba explodiu perto de seu veículo blindado em Bagdá. Charles, de 48 anos, pertencia ao 1º Batalhão do 67.º Regimento Blindado da 4.ª Divisão de Infantaria, com base em Fort Hood, Texas. Faltava um mês para ele concluir o período no Iraque.
No papel, Charles se revelou como raramente fazia em pessoa. Pensou muito no que dizer a um filho que não teria memórias do pai. Jordan nunca ouvirá a cadência de sua voz, mas conhecerá a sabedoria de suas palavras. “Nunca tenha vergonha de chorar. Nenhum homem é tão bom a ponto de não precisar se ajoelhar e mostrar humildade perante Deus. Siga seu coração e busque a força de uma mulher.”
Charles tentou prever perguntas que surgiriam nos anos seguintes. O time favorito? “Sou fanático pelo Cleveland Browns.” A refeição predileta? “Frango, frito ou assado, batata-doce, couve e broa de milho.” O primeiro beijo? “Na oitava série.” Ele escreveu sobre a fé e o fracasso, a inquietação e a esperança. Deu dicas de como se comportar num encontro e onde esconder o dinheiro em viagens de férias. Os dias chuvosos têm seus prazeres, escreveu: “De vez em quanto, você tem sorte e vê um arco-íris.”
Charles me enviou o livro pelo correio em julho, depois que um de seus soldados foi morto e ele retirou seu corpo de um tanque. O diário estava incompleto, mas o horror da morte do jovem o abalou tanto que ele quis enviá-lo mesmo tendo mais coisas a dizer. Charles o concluiu quando veio para casa durante uma licença de duas semanas, em agosto, para conhecer Jordan, então com 5 meses. Ele estava tão apaixonado pelo filho que mal dormia. Preferia manter vigília ao lado do bebê. Embora, por ser negro, ele às vezes sentisse a discriminação, não demonstrou rancor. “Não é justo julgar alguém pela cor da pele, pelo lugar onde cresceu ou por suas crenças religiosas”, escreveu. “Admire as pessoas pelo que elas são e aprenda com suas diferenças.”
Charles tinha seus defeitos, é claro: podia ser mal-humorado, facilmente magoado e exasperadoramente calmo, especialmente durante uma discussão. E às vezes eu sentia que ele dava mais importância ao Exército que à família. Ele se alistara em 1987. Tinha outras opções - era um artista talentoso -, mas se sentia realizado como soldado, algo que eu respeitava, mas nunca entendi.
Charles conhecia os perigos da guerra. Nos meses anteriores a sua partida e nos dias em que voltou de licença, ele falava com freqüência sobre o que poderia acontecer. No diário, escrevia sobre a perda de colegas. Ainda assim, quando olhou para mim um dia e perguntou: “Você não acredita que voltarei, não é?”, não consegui responder. Nunca dissemos em voz alta que fora por causa do medo de que ele não voltasse que decidíramos ter um filho antes de planejar o casamento, para não correr o risco de nunca ter a chance.
Mas Charles perdeu o nascimento de Jordan, pois se recusou a tirar licença e sair do Iraque antes que todos os seus soldados voltassem para casa - uma decisão que me magoou no início. E ele foi voluntário na missão em que morreu, disse um funcionário militar a sua irmã, e disseram soldados que trabalharam com ele. Embora não fosse obrigado a acompanhar o comboio de reabastecimento em Bagdá, ele concluiu que seus soldados precisavam da companhia de alguém experiente.
Quando Jordan tiver idade para perguntar como o pai morreu, falarei da coragem de Charles e de seu amor. E tentarei consolá-lo com as palavras do pai.
“Deus me abençoou mais do que eu poderia imaginar”, escreveu Charles no diário. “Não me arrependo. Servir nosso país é maravilhoso.” Na capa do diário, ele anexou uma mensagem para mim. “Para nós, a vida continuará em Jordan. Ele será uma extensão de nós e, espero, de tudo o que defendemos. Gostaria de vê-lo crescer e se tornar um homem, mas só Deus sabe o que o futuro encerra.”
Dana Canedy, jornalista do ‘New York Times’ ganhadora do Pulitzer, era noiva do soldado Charles King, morto em outubro"
Desculpem-me por fazer-nos voltar tão rápido à realidade depois das festas, mas esse artigo me tocou muito. Como pai e avô, procurei me colocar no lugar do sargento King. Mas, apesar da trágica beleza da herança que deixou para seu filho, não posso deixar de pensar que muito melhor presente seria ele estar vivo. "Servir nosso país é maravilhoso", escreveu ele. Os políticos adoram essas simplificações. Enquanto as pessoas não pararem para analisar a quem ou a que elas estão realmente servindo, muitos filhos continuarão crescendo sem pai devido a guerras, balas perdidas, acidentes de trânsito, falta de atendimento médico, doenças evitáveis, miséria...
Seria bom que todos refletissem sobre aquele refrão cantado ao fundo na canção de John Lennon. Sete palavras, e uma verdade tão simples, mas tão difícil de concretizar:
"War is over if you want it..."
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